A Jornada de Regis

Capítulo 1


O hospital cheirava a morte.


— Você precisa de sangue, Regis.


— Preciso de tempo.


— Eles morrerão mesmo assim.


— Não pela minha mão.


Roupas descartadas, manchadas de vermelho e duras por causa do gelo, cederam sob os sapatos deles. Não havia ninguém lá para limpá-los nem ninguém para levar combustível para o fogo.


— Não entendo o que o motiva. Havia irritação no tom de Dettlaff.


— Mesmo assim, peço que respeite minha decisão.


— Sua teimosia coloca a nós dois em risco. Você está enfraquecido. Está nos atrasando.


— Deixando as questões éticas de lado — continuou Regis —, seu comportamento, inerente à sua natureza, nos colocou no problema atual. Chamamos atenção. A trilha de corpos drenados só deixará mais fácil nos rastrear. Então me deixe ditar o caminho por algum tempo.


— O que sugere?


— Sugiro nos misturarmos. Usarmos algum disfarce.


— Entre os humanos? É… humilhante. — Dettlaff se mexeu inquieto e sibilou de dor ao encostar no ferimento sob o manto.


— Está infeccionado — declarou Regis com discernimento.


— Como isso é possível? Não consigo fechar. E, quando tentei transformar, senti que abria mais. Não entendo, era apenas um humano...


— Não. Não era humano: era bruxo.


Dettlaff lançou um olhar ao companheiro em que a relutância lutava inutilmente contra a curiosidade.


— Eles são mutantes adaptados para matar, um grupo chamado para proteger este mundo de visitantes de outras esferas — explicou Regis.


— De nós…


— De nós também, claro. No decorrer dos séculos, eles acumularam conhecimento considerável sobre os que consideram inimigos. Você viu esse conhecimento em primeira mão


Portanto, recomendo extremo cuidado.


Os músculos da mandíbula de Dettlaff estremeceram enquanto considerava as palavras do companheiro. — Que seja do seu jeito — disse ele, por fim.


A lona farfalhou. Os olhos do vampiro se viraram para a entrada da tenda. Um acólito de Melitele lançou-lhes um sorriso exausto. — Agora estou à sua disposição, cavalheiros. Perdão por fazê-los esperar tanto tempo, mas estou aqui sozinho. As irmãs seguiram o exército para Vizíma.


— Deixando os feridos no frio? — Regis estava surpreso. — O que motivou tanta pressa? A guerra terminou, os nilfgaardianos foram derrotados em Brenna.


O adepto olhou para baixo. — A coroa atrasou os pagamentos. Seis meses. O exército ameaçou se revoltar. Os soldados forçaram a polícia a levá-los até a capital para que pudessem exigir lá os pagamentos. Fui voluntário para servir na enfermaria e, se alguém jura servir, não é apenas quando o clima está bom e a barriga está cheia.


— Este hospital foi deixado sem muitos suprimentos.


— O sr. policial nos ofereceu gentilmente sua tenda pessoal. Esta aqui. E ele prometeu enviar provisões e medicamentos, pagos do bolso dele. Também haverá alguns mantimentos para você, cavalheiros, mas esparsos. — Querem comer?


— Obrigado. — Regis sorriu com os lábios apertados. — Não vamos comer. Mas, por favor, diga-me: você viu algum viajante honesto de passagem? Não é seguro se aventurar sozinho hoje em dia. As estradas estão cheias de todo tipo de gente sombria à espreita…


— De manhã, apareceram aqui três soldados. Vieram buscar um homem ferido. Disseram que era o comandante deles. Em seguida, foram para o oeste. Fiquei feliz por terem levado o homem. Mais uma alma infeliz resgatada.


— Obrigado.


Logo eles deixaram o hospital improvisado. A rua ia para o oeste entre elmos arranhados.


— Ninguém virá atrás eles — disse Dettlaff. — Eles serão esquecidos. Conheço os humanos. Têm memória curta.


— A garota ficou — retrucou Regis.


Acima deles, corvos circulavam a tenda.


Capítulo 2


A neve parara de cair.


Erskine esfregou os olhos e olhou diretamente à frente para os campos de Sodden que desapareciam sob o crepúsculo. Ele decidiu que era um bom momento para parar. Sinalizou para que os dois companheiros saíssem da estrada e foi para uma clareira próxima.


Néris soltou a mochila e tirou dela cobertores e provisões. Osyan acendeu uma fogueira. Erskine soltou a corda do trenó, sentou-se e começou a massagear as mãos.


— Já, já eu o ajudo — disse ele.


Néris olhou para o homem deitado no trenó. — É melhor descansar… enquanto pode.


— Sargento maldito — resmungou Osyan, soprando os dedos. — Ele tinha que ser tão pesado? Se fosse mais leve, já teríamos atravessado o Ina.


— Que azar — disse Néris.


Erskine se agachou ao lado do sargento com curativos e escutou sua respiração curta. — Estamos presos um ao outro — disse ele. — O primeiro turno de vigia é meu.


*


O vinho roubado tinha gosto de gengibre. Erskine fez uma careta, enrolou o cobertor nos ombros e olhou para os companheiros adormecidos. Osyan poderia muito bem ser seu filho. Ele se alistara no exército temeriano logo antes da invasão dos Cavaleiros Negros. Eles lutaram juntos por Dillingen sob o comando de Jan Natalis e depois com o rei Foltest, quando libertaram Sodden. Néris, mercenária da Companhia Livre, alegava ser filha de um barão lyriano. Erskine tinha certeza de que ela estava mentindo: se fosse mesmo, ele não conseguia imaginar que ela terminaria ali, quase congelando até a morte naquela jornada louca deles.


Ah, a jornada. Erskine suspirou e bebeu um gole do vinho. Começara com o sargento e a história dele sobre um baú em um porão cheio de destroços. Depois, veio a decisão que tomaram juntos — o caminho do qual não havia volta.


O calor do fogo convidava Erskine a dormir. Ele bocejou, levantou-se e cutucou Néris com a ponta da bota. — Seu turno — disse ele, entregando-lhe a garrafa. Néris esfregou os olhos, bebeu um gole e cuspiu nas chamas. Ele estava prestes a mencionar o gengibre, mas parou ao perceber que a mercenária olhava para a escuridão atrás dele.


— Não se preocupem — disse alguém parado no perímetro sob as sombras do acampamento.


Depois de um momento, dois estranhos emergiram e entraram no espaço iluminado. — Não estamos armados — disse um deles. A voz do grisalho era a mesma que tinham acabado de ouvir.


— Estamos a caminho de Dillingen. Épocas conturbadas são mais fáceis de enfrentar em companhia, não acham? Especialmente quando o destino é o mesmo.


— Como pode ter certeza de que é? — perguntou Osyan, que estava abaixado com a adaga já preparada nas costas.


— Não precisamos de companhia — disse Néris.


Erskine estava em silêncio. Ele estava avaliando a situação. Os recém-chegados não pareciam ameaçadores. Primeiro, eles realmente pareciam não estar armados. Segundo, eles pareciam um tanto doentes — ou fracos, pelo menos. O grisalho estava mortalmente pálido e falava em tom suave. O outro, moreno e silencioso, mancava ligeiramente, pressionando a mão contra o quadril. Um ferimento recente, talvez?


O grisalho acenou com a cabeça para o trenó. — Este homem não durará uma semana — disse ele. — Felizmente, porém, sou médico. Tenho um refúgio em Dillingen. Se nos apressarmos, talvez eu possa ajudá-lo


O vento sacudiu os galhos e reacendeu o fogo que morria.


Erskine percebeu que Néris e Osyan esperavam sua resposta. Ele considerou. Se o sargento morresse antes de chegarem ao destino, tudo teria sido em vão. Um cirurgião seria mesmo útil...


Ele soltou o cabo da espada, resmungou e assentiu. — Vocês têm nome?


*


Quando o dia nasceu, eles estavam prontos para partir. Erskine mexeu nas cinzas com o pé enquanto observava os novos camaradas. O grisalho, Regis, não estava mentindo. Apesar de ele mesmo mal conseguir ficar de pé, trocou eficientemente os curativos do sargento e preparou uma compressa para seus ferimentos. Surpreendentemente, o outro, Dettlaff, se ofereceu para puxar o trenó.


Eles avançaram. Depois de alguns passos, Dettlaff parou, encolhendo-se de dor. Regis o firmou com um braço. Erskine ajeitou a mochila e alcançou-os.


— Você parece bem cansado — disse ele. — Quem o deixou desse jeito? — Os recém-chegados ficaram em silêncio. Dettlaff olhou por cima do ombro para a estrada atrás deles como se esperasse ver alguém seguindo-os. Erskine não insistiu que respondessem. De alguma forma, ele tinha certeza de que não queria mais saber.


Capítulo 3


— Uma abominação fez seu covil na nossa torre do sino, mestre bruxo. À noite, ela sobrevoa a cidade, sequestra pessoas da rua e leva-as para devorar no seu covil. É um horror! Quanto nos custará para nos livrarmos dessa praga?


— Duzentos orens, sr. Conselheiro. Trata-se de um vampiro. E não é um qualquer.


O conselheiro ficou impressionado. — E você já deduziu a natureza da criatura?


— Examinei um cadáver.


Sorensen não achou adequado explicar que estivera rastreando a fera por um longo tempo, seguindo as ordens de alguém muito mais importante, que ele acabara na cidade de Warfurt seguindo o rastro dela. Ele supôs que, se as pessoas estavam dispostas a pagar em dobro por um trabalho, não fazia sentido desencorajá-las.


O conselheiro meditou, sacudindo o nariz. — É caro.


— Então tente você mesmo.


— Tentamos, é claro. Garotos valentes da guarda do castelo estão ansiosos para agir. Mas o ferro não gosta desse diabolismo. Queríamos atear fogo na torre do sino para afastar o desgraçado, mas...


— Não é certo! — O reverendo patriarca, que até aquele momento estivera olhando melancolicamente pelo vitral da janela do templo para a coluna escura do campanário, levantou-se e esbravejou: — Atear fogo sob um local sagrado! Três mil orens saíram do caixa da igreja para a torre do sino! Não foi para queimar tudo!


— Você não tem medo — perguntou o conselheiro irritado — de gritar desse jeito tão perto da fera?


— Os salmos nos protegem aqui — esbravejou o padre. — Desde que a música continue, a bruxaria não tem poder.


— Os coristas, reunidos na nave, continuaram a cantar. O som monótono se derretia nas paredes nobres do templo como o cheiro do incenso. Mas agora, mencionado na conversa, ele fez Sorensen pensar. — Reverendo — disse ele para o padre, abaixando a cabeça —, a fé e os salmos sagrados são os melhores meios contra os vampiros. Posso pegar seus coristas emprestados? A oração confundirá os sentidos do monstro e acabará com o poder dele. Conseguirei chegar bem perto e dar-lhe um golpe fatal.


O prelado bufou como um porco e olhou para o conselheiro. — É claro, filho. É claro.


*


A isca servira muito bem. O salmo explodiu em gritos de terror quando o vampiro mergulhou do céu escuro e caiu entre os coristas. Um crânio sem olhos, asas de morcego, veias pulsando de sangue sob a pele lisa. Da tribo Gharasham.


O monstro agarrou o corista mais próximo e enterrou-lhe as presas no corpo. Prendeu outro no chão com um pé longo e cheio de garras.


A euforia que sentiam ao se alimentar superava os outros sentidos, deixando-os letárgicos. Era o melhor momento para atacar. Sorensen emergiu de trás de uma gárgula de pedra, contorcendo-se para um arremesso como um discóbolo. A corrente zumbiu pelo ar. Os elos se enrolaram em volta dos membros da criatura. A pele sibilou contra a prata. O gharashami caiu, rolou pelo telhado inclinado do templo e caiu na rua de pedras abaixo, levando consigo algumas telhas. O bruxo o perseguiu pela sarjeta. Era hora de terminar o serviço. Sacou a espada de prata e atingiu o pescoço da criatura que lutava contra o que a prendia.


A silhueta do morcego se transformou numa poça de sangue. A lâmina bateu contra a pedra e a corrente afrouxou. Soltando-se, o vampiro reassumiu uma forma física, bateu as asas e saiu voando com gritos penetrantes. Sorensen saltou para longe do ataque furioso, rolou sobre o ombro e ajoelhou-se. Braços acionados por mola clicaram quando ele desdobrou a besta. Ele mirou. Disparou. O vampiro atordoado se desequilibrou em pleno voo, subiu laboriosamente em direção ao céu e caiu sobre o campanário com um barulho ensurdecedor.


O caçador seguiu a presa. Ele agarrou a corda do elevador deixada pelos pedreiros e cortou o contrapeso com a espada. O galeio da queda dos tijolos o lançou até o andar superior em um instante.


Dali, ele conseguiu ver a silhueta de um morcego contra a lua fugindo em direção ao leste. Ele esbravejou.


Capítulo 4


O vento carregou o cheiro de ervas e carne seca. Regis parou. — Há outras pessoas por aqui.


Dettlaff confirmou silenciosamente.


Eles estavam caminhando ao longo do Yaruga havia três dias. Os companheiros humanos, ainda desconfiados da dupla, evitavam-nos na maior parte do tempo e falavam muito pouco. Os vampiros se mantinham alguns passos atrás.


— Você encontrou uma companhia interessante — disse Dettlaff. — A sacerdotisa disse que eles eram soldados., mas fedem a medo e enganação.


— São desertores.


— Como você sabe?


— Talvez. O homem ferido… Removeram a insígnia do casaco dele.


— Então estamos tentando nos misturar com os humanos juntando-nos a uma gangue de fugitivos esfarrapados. Perfeito.


— É fácil para você julgar. Desculpe o clichê, mas viver entre os humanos ensina que nada é simples. Não sabemos quem eles são nem por que estão fugindo. Nem de quem. Não sabemos nada deles.


Eles pararam ao chamado de Osyan. Ele acenava para eles, apontando para uma fazenda próxima. Um pequeno complexo no limite da floresta. Havia uma carroça velha parada ao lado da cerca e cavalos que relinchavam nos estábulos. A fumaça que saía pela chaminé e sua promessa de calor os atraiu. Os vampiros observaram enquanto os novos companheiros conversavam. Em seguida, saíram da estrada e foram em direção aos prédios.


— Certo, não sabemos nada deles — concordou Dettlaff. — Mas tenho a sensação de que isso está prestes a mudar.


*


O fazendeiro voltou com a garrafa. Ele se sentou à mesa e começou a encher copos de barro. O cheiro de cerveja se espalhou pela sala. — Desculpe, mas não entendi — disse ele.


Erskine tomou um gole e limpou a espuma do bigode. Ele bateu de leve com o dedo nos lírios sobre a mesa. — Bem, certo, eu já expliquei. Somos do exército temeriano e recebemos uma missão secreta. Temos que carregar este... prisioneiro... resgatado dos nilfgaardianos. Precisamos levá-lo para o outro lado do Ina assim que possível. É por isso que precisamos de sua carroça.


— E dos dois cavalos — disse Osyan.


Néris estava parada perto da porta, com as costas contra a parede. Na mão, ela segurava uma espada desembainhada, enfiando a ponta entre as tábuas do chão. — E o conteúdo da despensa — acrescentou ela.


— Não é certo. Como nós vamos sobreviver ao inverno sem carroça num lugar tão remoto?


— Nós? — perguntou Osyan. — Quem mais?


O fazendeiro olhou de relance para a porta. Osyan cuspiu no chão, pegou uma adaga e colocou-a sobre a mesa. O fogo da fornalha refletiu na lâmina.


— Gente boa, tenha misericórdia...


— Não somos gente boa. Seria uma pena se você descobrisse exatamente por quê.


— Osyan... — disse Néris.


— Cale a boca. A escolha é dele.


Dettlaff, que estivera parado nas sombras até então, aproximou-se e jogou uma bolsa sobre a mesa. As moedas tilintaram. — Faça o que quiser — disse ele. — Vou dar uma volta.


Quando a porta bateu, Regis pegou a bolsa e chegou mais perto do fazendeiro. — Meus camaradas são soldados, não ladrões — disse ele, encarando Osyan nos olhos. — Eles só precisam de uma égua, que prenderão a um trenó. Uma égua pela qual você receberá... uma compensação adequada.


Erskine abriu a boca, tentando encontrar algumas palavras.


O vampiro sorriu com os lábios apertados. — Os soldados temerianos entendem que não devem privá-lo de seus pertences — disse ele. — Se fizessem isso, a notícia da missão secreta deles chegaria aos ouvidos errados. E isso... bem... isso os colocaria em grande perigo.


*


Aine sentiu os galhos sob as botas.


Ela espalhou a neve, pegou os galhos e jogou-os no cesto. Ela coletara o suficiente e decidiu voltar para casa.


Ela andava rapidamente, cantarolando baixinho sua música favorita. No limite da floresta, ela parou, soltou o cesto e recuou depressa. Ela esperou atrás de uma árvore por um longo momento e, em seguida, espiou pelo lado do tronco.


Havia estranhos na cabana. Uma mulher puxava Ludka pelas rédeas. A égua bufava e chutava, inquieta. Dois homens saíram da despensa, carregando sacos e garrafas. O quarto elemento, o homem mais velho, conversava com o pai dela na cabana.


Naquele momento, Aine sentiu mais alguém. Alguém muito mais perto.


— É melhor você esperar aqui — disse de trás dela uma voz baixa e hipnotizante.


— Mas meu pai...


O estranho colocou nos ombros dela sua mão fria e pálida, com manchas de sangue na palma. — Ele ficará bem. Eles logo irão embora. Olhe. Olhe bem este seu mundo, onde nada é simples.


— Não entendi.


— Não importa.


A garota ficou em silêncio. Ela observou o homem grisalho tirar algo da bolsa e colocar na mão de seu pai. Ela viu o brilho do ouro.


— Eles só levarão Ludka? — perguntou ela depois de um momento.


— Sim. Meu amigo tem o dom da persuasão.


— Isso é bom.


— Bom? Vocês tiveram sorte. Eles queriam roubar vocês.


Aine se virou e olhou o estranho nos olhos. — Mas alguém estava cuidando de nós.


Capítulo 5


O rio Ina brilhou sob os últimos raios do sol que se punha.


As fortalezas Vidort e Carcano ficavam à beira d'água. Queimadas durante a guerra, elas agora eram lentamente reconstruídas pelo exército temeriano.


Osyan voltou a atenção deles para o norte.


— Lá — disse ele. — O gelo conecta as duas margens. Iremos por lá.


Erskine bufou por entre os dedos. — Não estou gostando disso — disse ele. — A crosta é fina em alguns locais, cheia de buracos, e os fortes estão perto demais. Deveríamos ir até a ramificação do Ina e do Trava. Procurar uma vau isolada. Será melhor, mais seguro para o sargento.


— E para o seu companheiro... — disse Regis. — Se você está preocupado com ele de verdade, recomendo que se apresse. A coisa mais sensata a fazer seria pedir ajuda de Carcano. Eles provavelmente têm muitos suprimentos médicos. Mas vejo que você não gostou muito dessa abordagem.


— Bem, não gostamos — disse Erskine. — Tirou as palavras da minha boca.


Dettlaff sorriu. — Qual é o problema com vocês, soldados temerianos? — perguntou ele. — Não vão procurar ajuda por conta própria?


— Olhe aqui, seu espertinho — disse Osyan. — Perguntamos quem são vocês? De onde vocês vêm? Ou quem abusou de vocês ao ponto de parecerem cadáveres?


Dettlaff ficou em silêncio.


— Então vamos para Fen Carn — disse Regis. — Eu tinha um chalé de verão lá, talvez ainda haja alguns suprimentos.


— Perdeu o juízo, cirurgião? — perguntou Erskine. — Não vamos atravessar terreno élfico amaldiçoado. Não é bom para o sargento, você disse? Bem, então teremos que forçar o Ina. Aqui. E depois irmos depressa para Dillingen.


*


Eles entraram no rio sob a cobertura de nuvens escuras. Apenas o ruído do gelo estalando perturbava o silêncio.


Quando parecia que passariam sem serem percebidos, um barulho soou atrás deles.


Osyan xingou. — Três cavaleiros. Patrulha armada.


Os temerianos os viram imediatamente. Um esporeou o cavalo e galopou em direção à fortaleza; os outros dois trotaram para a praia. Desmontaram, sacaram a espada e correram para o gelo. — Parem! — gritaram eles. — Parem!


A égua que puxava o trenó relinchou e obedeceu.


— Ande, sua mula! — gritou Erskine, puxando as rédeas. Mas sem resultado. Momentos depois, os temerianos os alcançaram, tão perto que era possível ver o rosto deles.


Regis olhou para Dettlaff. — Vamos tentar negociar.


Osyan cuspiu no chão e girou o estilingue.


O projétil sibilou pelo ar e atingiu o capacete de um dos soldados. Ele gemeu e caiu no gelo. O segundo soldado saltou sobre a pessoa mais próxima: Néris. Eles começaram uma briga, perderam o equilíbrio e caíram em um buraco próximo.


— Néris! — Erskine soltou as rédeas e começou a andar na direção da fenda.


Osyan segurou o braço dele. — Deixe! — gritou ele. — Precisamos fugir!


Regis estava cansado de fugir. Ele pulou nas águas escuras e localizou a mercenária, que lutava com o temeriano enquanto os dois afundavam. A armadura do soldado os arrastava para o fundo. Néris chutou o soldado e soltou o ar pela boca. Regis nadou para baixo, segurou-a e tentou subir, superestimando a capacidade de seu corpo recém-regenerado. Ele puxou e sentiu o ombro deslocar da junta. Ele rangeu os dentes. Tentou de novo. Ossos estalaram e a dor irrompeu a ponto de deixá-lo à beira do colapso.


Dettlaff saltou dentro d’água.


Ele empurrou Regis para o lado, agarrou a mercenária com uma das mãos e o soldado temeriano com a outra. Ele os separou e rapidamente subiu para a superfície.


*


Erskine e Osyan não estavam à vista quando eles rastejaram para o cascalho ao lado do Ina. Um alarme soou nos fortes ao lado do rio. Regis tentou ajudar Néris a se levantar, mas ela recusou a oferta e andou o mais rápido que conseguiu em direção à floresta. Ele rapidamente a seguiu, virando-se para ver de relance Dettlaff arrastando o soldado para longe antes que a linha das árvores bloqueasse sua visão.


Eles correram por um longo tempo pela floresta. Depois, exaustos, eles andaram ao longo dos montes de Fen Carn. Néris ouvira falar da fama sombria do lugar, mas estava cansada demais para protestar.


Finalmente, chegaram a uma cabana com um interior simples. Havia uma mesa com garrafas e ervas secas nas paredes. O cheiro queimou-lhe as narinas.


Regis encontrou roupas secas no meio da confusão e, enquanto ela trocava de roupa, ele procurava algo entre as garrafas sobre a mesa.


— Esta cabana é sua? — perguntou ela.


— Minha — disse ele, gemendo de dor ao esfregar o ombro. — Lá está.


Eles foram para o lado de fora e sentaram-se ao lado da fogueira. Regis alimentou as chamas. Limpou a poeira e as teias de aranha do frasco, tirou a rolha e entregou-o a Néris.


Ela tomou um trago. O álcool arranhou-lhe a garganta e encheu-a de calor.


— Ai, nossa... O que é isso?


— Tintura de mandrágora.


— Quer?


— Obrigado. Sou abstêmio.


— Um fabricante ilegal de bebida abstêmio que se jogou nas profundezas traiçoeiras para ajudar estranhos. Você é uma figura misteriosa, Regis.


— Bem... Uma vez, conheci um anão que se dizia altruísta incorrigível. Pelo jeito, essa atitude é parecida com a minha.


Eles ficaram sentados em silêncio. Néris olhou por um longo tempo para as sombras que tremulavam na neve atrás de Regis. Havia algo errado. Por fim, ela entendeu o que era. Ela enrijeceu o corpo e gemeu baixinho. — Você não lança... Você é um...


— Sim. Sou.


Ela se afastou depressa, cobrindo o pescoço com a mão.


Regis jogou mais lenha sobre as brasas. — Relaxe. Eu disse que era abstêmio. Além do mais, se eu quisesse ferir você, teria simplesmente deixado que se afogasse.


— E o Dettlaff?


— O Dettlaff também, mas será melhor manter isso em segredo.


O fogo crepitou. Como se tivesse sido invocado, Dettlaff surgiu das sombras e sentou-se entre eles.


— O temeriano vai sobreviver — disse ele. — Eu o carreguei até os muros onde sabia que ele seria visto.


Néris estava tremendo. A cabeça dela estava zunindo. As roupas de Regis irritavam-lhe a pele e as calças imensas escorregavam da cintura. Ela as puxou para cima e apertou o cinto ao máximo.


— Qual é o problema? — perguntou Dettlaff.


Ela hesitou, mas apenas por um momento. E tomou uma decisão.


Ela engoliu a bebida e sorriu.


— Nada — respondeu ela. — Está tudo certo.


Capítulo 6


Sem fôlego, o conselheiro subiu a torre com dificuldade. Advertido quanto ao que encontraria lá, ele se preparou com um lenço perfumado, que apertou sobre o nariz. Sorensen já inspecionava a cena. Cadáveres em vários estágios de decomposição enchiam o ninho do vampiro, mas o fedor não parecia incomodar o bruxo.


— O dinheiro está esperando perto do cavalo, mestre bruxo. O patriarca pediu que você saísse da cidade assim que possível.


O caçador deu de ombros. Ele mediu a distância entre os ferimentos das presas com a mão. — Peculiar. As marcas de mordida indicam dois padrões diferentes de dentes. O gharashami trazia as vítimas para cá e quebrava a espinha delas para que não pudessem se defender, como um pássaro que mastiga as minhocas para os filhotes.


O conselheiro fez uma careta. — O que isso quer dizer?


— Quer dizer que ele estava alimentando alguém.


*


— Sabrina.


Nada, de novo. O xenovox falhou por causa do frio. Sorensen teria adorado jogar a caixa falante no rio e acabar com o assunto. Infelizmente, ele precisava de uma resposta. Quando a curiosidade superou a irritação, ele tentou de novo.


— Sabrina, sua vaca idiota.


— Sorensen, querido. Como você é educado — respondeu o dispositivo com uma voz metálica. O cavalo ansioso abaixou as orelhas e reduziu o passo para um trote. O bruxo o esporeou.


— Você mentiu para mim.


— É mesmo?


— Há dois vampiros. Isso vai lhe custar o dobro.


— Esse é o único motivo para me incomodar? Para barganhar?


— Quero saber a identidade do seu fugitivo. E as circunstâncias da fuga.


— “Sem perguntas.” Não foi esse o nosso acordo?


— O risco aumentou. Preciso saber com quem estou lidando. Caso contrário, voltarei para Angren.


O silêncio se estendeu. Sorensen começou a suspeitar de que o xenovox se recusara novamente a cooperar.


— Eu e duas sacerdotisa recebemos a missão de atacar o Castelo de Stygga, lar do feiticeiro renegado Vilgefortz de Roggeveen. Encontramos os restos dessa criatura morta por um feitiço. Tentamos regenerá-la. E conseguimos.


— Vocês ressuscitaram um vampiro? Mas por quê?


— Para interrogá-lo. Ele poderia ter informações importantes. O Castelo de Stygga viveu eventos históricos que ainda não compreendemos totalmente.


— Com certeza ele acabou sendo um interlocutor cheio de charme.


— Na verdade, não. Dentre os humanos, ele se apresentou como Emiel Regis. Há muitas indicações de que essa é uma criatura antiga e sofisticada. Mas, ao acordar, ele foi tomado por uma fome cega. Antes que eu conseguisse interrogá-lo com mais detalhes, ele fugiu. Pelo jeito, eu o subestimei.


— Ou ele teve ajuda. Como eu disse, há dois vampiros. Eles viajam juntos.


— Está arrependido de nosso acordo? Ou ainda está pechinchando?


Sorensen a ignorou. Um chalezinho modesto surgiu depois da curva. Ele puxou as rédeas e direcionou para lá o cavalo.


— Preciso ir. Tenho trabalho a fazer.


— Bom garoto.


*


— Saqueadores temerianos. Ladrões comuns. Eles queriam nos roubar. O homem grisalho os deteve. Ele os acalmou. Sem nem mesmo levantar a voz. Não deixou que os outros limpassem a despensa. E ele pagou pela égua.


— Ouro... — Aine olhou para baixo. A palavra saiu de sua boca antes que conseguisse pensar.


O bruxo esfregou a cicatriz que tinha no pescoço. — Mostre-me.


O fazendeiro olhou friamente para a filha. O recém-chegado levara armas o suficiente em seu cavalo para suprir uma dezena de soldados. E aqueles olhos, como os de uma cobra ou de um lagarto. Não adiantava enfrentar um homem como aquele. Por bem ou por mal, ele tirou o sapato, abriu a sola com uma faca e tirou uma moeda.


O ouro manchado trazia a estampa de um leão alado com cabeça humana. No verso, uma carruagem. Sorensen vira moedas como aquela antes — nos montes de Dur Lugal Iddin. Um sorriso de lobo se abriu em seu rosto. Ele achara que os rastros tinham esfriado.


— Esta moeda tem mais de trezentos anos. Hoje a gente só as encontra nas tumbas. Tem sorte, senhorio, que eles não estejam interessados em você.


— Ladrões de túmulos, não é? Hienas de cemitério?


Sorensen ajustou o sorriso, colocou o pé no estribo e saltou para a sela. — Pior. É alguém que se lembra daquela época.


O fazendeiro observou o ouro que partia. Ele engoliu em seco, suspirou e foi acalmar a filha, que se trancara no depósito de madeira. Ele não conseguiria ficar furioso com ela.


Capítulo 7


Néris protegeu os olhos do vento e alcançou Regis.


— Você disse que tinha um refúgio em Dillingen. É para lá que vai?


— Sim.


— Para quê?


— Para me esconder. Um bruxo está nos seguindo. Um caçador de monstros.


Dois dias tinham se passado desde que tinham partido de Fen Carn e voltado para o Yaruga. O céu estava finalmente clareando e as planícies cobertas de neve brilhavam sob o sol que se punha.


— Um bruxo? Na minha opinião, para seres como você, nem mesmo cinco deles seriam um desafio.


Dettlaff desabotoou o casaco, expondo os quadris.


— Olhe.


Néris sibilou ao avaliar o ferimento horrível no lado do corpo dele.


— Ele me atacou em Warfurt há três semanas. Normalmente, isso curaria de um dia para o outro.


— Caçar vampiros parece ser a especialidade dele — disse Regis. — Temos que ter extremo cuidado.


— Seria cuidadoso, então, ficar em Fen Carn. Usar a reputação do lugar como abrigo...


— Superstição e uma pilha de pedras não são o suficiente — disse Dettlaff. — Mas há lugares que foram criados para nos dar um abrigo seguro.


Néris estalou os dedos.


— Quero pedir ajuda a você. Em algum lugar perto de Dillingen...


Ela parou de falar ao ouvir o som de vozes. Regis apontou para um acampamento entre as árvores murchas. Havia algumas barracas com buracos e fumaça saindo devido às fogueiras dentro delas.


— Voltaremos a esta conversa — disse ele.


*


— Eles nos tiraram de nossas casas no fim da guerra e ainda estão sentados dentro delas. Soldados... que vão todos para o inferno.


Sem expressão, eles olharam para o campo de exilados atrás da mulher enquanto ela contava sua história.


Eles encheram nossa vila com seus baluartes, tratando-a como se fosse um posto militar. Eu disse a eles: “Aqui é o meu lar e ali, na água, está o barco que meu pai e meu avô usavam para navegar pelo Yaruga.” Mas eles não se importaram. Portanto, peguei a criança nos meus braços e implorei por misericórdia. É inverno, disse eu. Está frio. Estamos com fome. Supliquei para que poupassem uma cabana, que se comportassem como seres humanos.


— Eles não cederam — disse Dettlaff.


Uma criança espiou por trás da mulher. Olhos esperançosos em um rosto faminto. Ela afastou os cabelos dele da testa e ajustou seu capuz.


— Eles chamaram os intrusos nilfgaardianos — disse ela. — Invasores malditos. Mas agora a luta contra os Pretos, o campo deveria ser liberado. Ainda assim, não podemos voltar para as nossas cabanas. Parece-me que fomos nós que perdemos.


Regis rangeu os dentes.


— Espere até amanhã. Voltem para casa no alvorecer.


— Mas os militares... Nós tentamos.


— Sim. Agora, deixe-me tentar.


*


Era fim de tarde quando chegaram ao assentamento. Havia cinco cabanas com o telhado coberto de neve e um píer solitário, com os mastros oscilantes dos barcos de pesca. Risadas e gritos divertidos soaram na cabana maior.


Regis tirou a sacola do ombro e entregou-a a Dettlaff.


— Espere aqui — disse ele.


A porta rangeu quando ele a abriu e entrou para o ar parado denso, cheio de fumaça de cachimbo. Os soldados reunidos à mesa ficaram em silêncio.


— Quem é você?, perguntou um homem barbado com uma cicatriz na têmpora.


— Meu nome é Emiel Regis. Estou viajando para Dillingen.


O soldado se inclinou para a frente, repousando o queixo áspero em um punho gordo.


— Você vai sozinho? É muito corajoso.


— Ou idiota — comentou outro soldado.


— Ou idiota, é mesmo — disse o homem barbado. — Você está perdido, Emiel Regis. Mas, para sua sorte, já uma estrada que leva além da Colinas. Então você só precisa andar em linha reta.


— Eu sei disso.


— Então por que veio aqui?


— Conheci algumas pessoas que vocês expulsaram de casa. Até mesmo as crianças tiveram abrigo negado.


Regis fechou a porta atrás de si e aproximou-se da mesa. Dedos inquietos se moveram em direção ao cabo das espadas.


— Eram as ordens — disse o barbado.


Regis encontrou o olhar dele e ergueu a mão. As garrafas sobre a mesa estremeceram.


— As ordens mudaram — disse ele. — Este lugar não pertence a vocês. Vocês partirão para Vidort sem demora. Esquecerão de nosso encontro e que estiveram aqui.


As feições do homem barbado relaxaram e o rosto dele perdeu totalmente a expressão.


— Sim, senhor — sussurrou ele.


Quando o último soldado saiu da cabana, Regis sentiu os olhos enevoados. Ele tentou se aproximar do banco, mas as pernas se recusaram a obedecer. Ele desmoronou, batendo a cabeça na cadeira.


Enquanto a escuridão o envolvia, ele se lembrou do início da jornada. Um hospital nas terras ermas, os gemidos baixos dos que estavam prestes a morrer. O cheiro da morte.


Eles morrerão de qualquer forma.


Não pela minha mão.


Dettlaff estava parado ao lado dele, com as mãos pingando sangue.


Você precisa de sangue, Regis.


Capítulo 8


— Cadê o dinheiro, seu filho da puta? Diga!


— Ghrr!


Os corvos observavam com indiferença enquanto os homens faziam suas tarefas. O sargento, agora pálido como um homem afogado, rapidamente recuperou a cor quando Osyan agarrou seu pescoço e sufocou-o.


— Ghrr!


Erskine entrou na clareira. Ele xingou e largou a pilha de lenha que carregava. Com alguns passos largos, ele chegou ao trenó, agarrou Osyan pelo casaco e jogou-o no chão.


O velho, agora da cor de uma beterraba, se agitou sob as peles ao se esforçar para respirar.


— Você quer matá-lo, seu pamonha? Erskine rosnou e deu um chute nas costelas do companheiro.


— Você perdeu a cabeça? Por que não me chamou quando ele acordou?


Osyan usou os cotovelos para se arrastar para longe do alcance da bota de Erskine.


— Não matar. Só assustar um pouco. Um sorriso arrogante surgiu no rosto dele.


Erskine o encarou friamente. Se Osyan tivesse conseguido de alguma forma extrair o local do esconderijo, ele teria agarrado o sargento e corrido para a floresta sem pensar duas vezes, abandonando seu cúmplice no frio. Como fizeram com Néris.


— Se acontecer de novo, pendurarei você pelas bolas.


— Os dois serão pendurados — rosnou o sargento. — Desertores. Traidores!


Eles riram ao mesmo tempo.


— Por que nos trata dessa forma, Comandante? Nós o tiramos da boca aberta da morte! Cuidamos de você enquanto estava doente! Se me perguntar, merecemos um pouco de gratidão, hein?


— O executor agradecerá feliz com o machado dele.


Erskine soprou as mãos ásperas e rígidas e, em seguida, encostou-se novamente na beirada do trenó. Osyan se levantou do chão e sentou-se em seu lugar no outro lado. O sargento os encarou com desprezo sob as sobrancelhas congeladas. O dado já fora lançado. Não adiantava nada mentir. Não depois da demonstração de Osyan.


— Onde você escondeu o saque, seu velho brutamontes?


— Pertence à empresa. Ele será dividido justamente.


— Não me faça rir. São os espólios de roubo... em Dillingen. Ah-há, a honra de um ladrão, hein?


— Confiscados sob a Lei do Conquistador. De uma cidade reclamada dos Pretos. O que você é, Erskine, um virgem da guerra? É sua primeira, não é?


— Não é a primeira. Mas provavelmente será a última quando pegarmos esse saque. Acho que chega de marchar atrás das trombetas.


Osyan apertou os lábios, pegou a faca, cuspiu na lâmina e limpou-a na manga da camisa.


— Por que perder tempo se explicando? Vamos começar a cortar e deixar que ele cante.


Erskine deu de ombros, sem adicionar nada além do consentimento silencioso. Ele ainda sentia um resto de respeito pelo sargento, cuja teimosia de aço levara a unidade deles ao sucesso em inúmeras ocasiões, e não queria sacudi-lo de um lado para o outro como um animal raivoso. Portanto, ele permitiu ao velho um momento para que chegasse às próprias conclusões, para se familiarizar com a gravidade da situação.


Osyan, obviamente, entendia pouco daquilo. Ele entrara para o serviço ao Rei Foltest no outono anterior, depois que a cavalaria de Kaedweni roubara e destruída a fazenda de seu pai. A experiência ensinara a Osyan que “soldado” significava “ladrão impune”. Fora por isso que se alistara.


A lâmina deslizou entre as peles, com a borda fria pressionando contra a pele do sargento. No rosto cheio de cicatrizes, a raiva e a amargura deram lugar à impotência. Resignado com seu destino, ele falou.


— No Yaruga, a um dia de viagem a leste de Dillingen, há uma serraria. Nós enfrentamos os nilfgaardianos lá. Eles queriam que usássemos as barcaças para recuarmos pelo rio...


Erskine e Osyan estavam parados sobre o homem ferido como corvos famintos.


Capítulo 9


Dettlaff sentou Regis à mesa. Ele olhou em volta do aposento e foi até o alçapão do porão.


— Isso foi irresponsável — disse ele.


— Eu sei.


— Só não diga que precisa de tempo. Você sabe o que precisa ser feito.


— Eu sei.


O fogo na lareira morrera e a escuridão envolveu o interior da cabana abandonada. Néris se sentou à mesa e bebeu a tintura de mandrágora. Regis massageava a têmpora, dolorida por causa da queda.


— Você disse que precisava da nossa ajuda.'


— Sim.


— Então, tenho uma condição: chega de segredos. Está na hora da verdade. Oferecida integralmente e da forma mais sucinta possível. Por favor.


— A verdade é entediante, Regis. Ela suspirou. — Em algum lugar perto de Dillingen, há um baú contendo os espólios de guerra. O tal sargento Arnault escondeu o baú lá para mantê-lo seguro até o fim da guerra. Infelizmente, no fim da campanha, ele foi ferido em batalha. Nós o tiramos do hospital de campo para que ele não morresse lá, com frio e miserável.


— E para que ele dissesse o local a você.


Néris ficou em silêncio. Regis abriu as mãos.


— Desculpe, mas não estou convencido.


— Você sabe o que aguarda o homem se não os seguirmos. Erskine e Osyan... você os conheceu. Você viu quem eles são.


— E quem é você?


— Só quero saber do ouro. Não quero que ele morra.


— Que nobre.


— Deixo a nobreza para você, Regis. Não, não proteste. Vi você cuidar de Arnault dia após dia. Você também me ajudou, apesar de não precisar. Quer a verdade? Aqui está ela: você já sabe que, sem nossa ajuda, ele morrerá. Você irá comigo porque sua consciência exige.


Dettlaff ergueu um alçapão das tábuas do chão.


— Ela tem razão, Regis — disse ele. — Vamos acabar logo com isso.


*


O sótão estava úmido e ainda mais escuro.


Regis correu o carvão pelo chão e fechou o símbolo. Dentro do círculo, ele colocou a tigela de barro que tiram pegado na cabana em Fen Carn.


— Por que você o salvou, Dettlaff?


— Quem?


— O soldado temeriano, lá no Ina. Você poderia tê-lo deixado lá.


— Poderia. Mas salvar a vida dele... pareceu algo que você faria.


O círculo brilho quando a magia antiga colocou o ar em movimento. Dettlaff ficou sobre a tigela. Com um movimento ágil, ele cortou o pulso. O sangue fluiu.


— Sempre foi fácil para mim — disse ele. — Estou por aí há muito tempo. Tenho uma opinião firme sobre os humanos e suas paródias de civilização. Eles se espalharam por este mundo como uma praga. Eles o arranjaram de forma tão ruim que não tinha como dar certo.


— Você achava isso até agora.


— Ainda acho.


— E, mesmo assim, alguma coisa mudou.


Dettlaff fez uma careta e mexeu os dedos dormentes.


— Você vê algo mais neles — disse ele. — Você ainda está tentando ajudá-los. É...


— Ingênuo?


— Intrigante.


Dettlaff fechou o ferimento e saiu do círculo. Regis tomou o lugar dele. Ele segurou a tigela com as duas mãos, sussurrou um encantamento e bebeu.


Sangue fresco se espalhou dentro dele, causando tremores de euforia. Os sentidos do vampiro, anteriormente silenciados, explodiram. Ele ouviu cada murmúrio. Um redemoinho espalhando a neve nas colinas. O barulho das águas enevoadas do Yaruga. O relinchar de um cavalo e o bater das patas em uma trilha distante.


*


O garanhão resmungou. Sorensen bateu nele com as rédeas. Ele queria ter certeza de que chegaria longe o suficiente da cabana.


A alvorada se aproximava quando ele chegou à clareira no Monte de Turlough. Os pinheiros lançavam longas sombras nas rochas. Ele se sentou no tronco de uma árvore caída e enrolou o manto no corpo.


— Sabrina.


— Tem alguma ideia de que horas são? Acha que feiticeiras não dormem?


— Encontrei os vampiros.


Um suspiro.


— Contrato cumprido?


— Ainda não. Mas ouvi a conversa deles. Sei quem eles estão seguindo.


— Sorensen, meu amor... se eu precisasse de um rastreador, contrataria um. Acredito que você seja um bruxo?


— Um bruxo, não um idiota. O cinza, Regis... Supus que matá-lo seria um ato de misericórdia, mas ele não vai para o túmulo. No Yaruga, ele hipnotizou um bando de soldados.


— Quer barganhar de novo?


— Quero ajuda.


Uma risada suave.


— Você tem sorte por eu estar preparada.


Houve um clarão e um portal se abriu ali perto. O poder fluiu do caos rodopiante e assumiu o formato de uma arma. O contorno ficou cada vez mais claro. Finalmente, ela encheu de calor e solidificou. Uma adaga ornada caiu na neve.


Sorensen a pegou, correndo os dedos ao longo das runas.


— O que faço com isso? Afio estacas?


— Ela é encantada. Ativa com o contato com carne de vampiro. Não consegui reproduzir o feitiço completamente, mas o que coloquei na adaga deve ser o suficiente.


— Tem certeza de que funcionará?


— Não. Vilgefortz, o criador do feitiço, era inteligente de uma forma demoníaca. Recriar a fórmula foi um desafio caro. Só o processo de infusão da lâmina demorou uma semana. Use-a com sabedoria. Só pode ser usada uma vez.


— Lembre-se de que há dois deles.


— Sim, sim. Mas você, meu querido...


Sorensen suspirou. Ele saiu de cima do tronco e guardou a adaga sob o cinto.


— Mas sou um bruxo.


— E pensará em alguma coisa. Ela fez uma pausa. — Correto?


Sorensen montou no cavalo. Ele olhou para os rastros do trenó que atravessavam a clareira em direção ao oeste.


— Tenho outra opção?


Capítulo 10


A porta, pendurada em uma única dobradiça, ricocheteou da parede quando Osyan saiu da serraria, bufando e ofegando.


— Nada. Nada! Nem mesmo uma moeda enferrujada!


— Você encontrou aqueles tijolos soltos sobre os quais ele falou?


— Você viu o sótão? Metade dos tijolos estão soltos! Puxei a maioria deles da parede e não havia um esconderijo. A terra está entrando, caralho. Estamos no lugar errado, estou dizendo.


Erskine olhou em volta da clareira: Uma vala comum exumada, corpos congelados espalhados que tinham sido mordidos por animais selvagens. Mantos nilfgaardianos pretos com a marca do escorpião.


— Não há dúvidas. São os corpos dos lanceiros do Sétimo Daerlan. Como o velho nos disse.


— Então ele deve ter confundido as coisas um pouco. Acorde-o.


Eles ouviram uma risada proveniente do trenó. O sargento já estava acordado e ouvia a conversa deles. Ele gargalhou, saboreando o momento.


— Do que está rindo? Osyan rosnou e brandiu a arma na direção do velho. Erskine agarrou o pulso dele.


— Acalme-se, sim? Ele está dizendo alguma coisa.


Erskine aproximou o ouvido da boca do comandante e ouviu seus sussurros: “Vocês já estão mortos, seus tolos imbecis.”


Sorrindo, o sargento tirou a mão de dentro das peles e apontou em direção a Dillingen com um dedo trêmulo. O sol baixo, escondido atrás de uma floresta de árvores cinzentas e sem folhas, lançava sombras longas e sinistras no terreno. Os dois desertores olharam para a direção que o velho indicara.


Subitamente, Erskine se abaixou e inspecionou o cadáver mais próximo. O revestimento da armadura estava arranhado com marcas de garras, rasgado para expor a carne congelada logo abaixo. Os ossos estavam quebrados e despedaçados por mandíbulas mais fortes do que as de um lobo.


O temeriano, agora pálido como se estivesse morto, se levantou depressa e virou-se para o parceiro.


— Comedores Mortos.


A risada maligna do sargento ecoou nos ouvidos deles quando olhos terríveis piscaram freneticamente dentre as árvores na escuridão que caía.


*


O bruxo seguiu os rastros do trenó. Era crepúsculo quando a floresta virou uma clareira, com uma cabana de lenhador abandonada ao lado de pilha de árvores derrubadas. Um uivo faminto soou acima do murmúrio suave do rio. E latidos insanos. O cavalo bufou jogou a cabeça para o lado e recusou-se a continuar em frente. Ele teve que deixar o animal e continuar a pé.


Sorensen se esgueirou atrás da linha das árvores e para a clareira. A lua cheia dançava nas águas prateadas do Yaruga, na neve prateada, na espada prateada do bruxo. Um bando de aparições rastejava em volta da serraria, tentando chegar às pessoas barricadas no interior. Havia um trenó abandonado perto da roda d'água. Uma das criaturas medonhas devorava um pobre coitado caído sobre o trenó. O barulho horrendo da carne sendo dilacerada e de ossos sendo quebrados encheu o ar.


Um dardo da balestra arrancou o monstro do trenó e prendeu-o em uma árvore.


Sorensen retirou uma pequena bomba do gancho no cinto, acendeu o pavio com o sinal de Igni e começou a trabalhar.


*


O bruxo, com toda sinceridade, era tão aterrorizante quando os Comedores Mortos.


Os olhos reptilianos. Veias inchadas e escuras no pescoço e na têmpora. Roupas ensopadas com o fedor nojento do sangue dos monstros.


— Você tem bebida?


Por algum motivo, isso deixou as coisas mais fáceis com o homem. Osyan entregou um cantil a ele.


— Seus amigos estão vindo para cá. Vão se juntar a nós em breve.


Os desertores se entreolharam. Erskine instintivamente colocou a mão no cabo da espada. Porém, suas chances não eram boas.


— O que lhe deu a ideia de que estamos viajando com um grupo maior? Está seguindo nossos rastros?


— Somente os dois que se juntaram a vocês no caminho.


— Tem algum problema com eles?


— Mais ou menos. Fui pago por eles. Sou um bruxo, caso não tenham percebido.


— E eles são o quê, afogadores?


— Vampiros.


Erskine ficou sem palavras por um momento.


— Eles pareciam bem comuns — disse ele finalmente.


— Também estou surpreso. O bruxo deu de ombros. — Mesmo assim, eles são muito mortais.


Osyan, consumido pela decepção, chutou uma pilha de ferramentas enferrujadas, como se elas fossem pessoalmente responsáveis pelo fracasso dele. A pilha respondeu com um ruído triste ao desmanchar.


— O velho nos enganou. Mandou-nos até aqui para encontrar a morte. Um caminho tão longo e não ganharemos nem mesmo um oren.


O bruxo colocou a mão dentro da bolsa. Ele rolou a moeda entre os dedos da mão ensanguentada. Esfinge em um lado. Carruagem no outro. O ouro antigo capturou o reflexo do luar. Os desertores olharam para ele, como se estivessem hipnotizados.


— Não sei qual era o seu negócio aqui. Mas acho que posso sugerir coisa melhor. Preciso de parceiros.


— Você paga... — Osyan engoliu em seco — ... com ouro?


— Eu não. O bruxo sorriu maliciosamente. — Vampiros. Eles têm mais ouro. E vocês... vocês podem me ajudar a preparar uma armadilha.


Capítulo 11


O campo de batalha estava silencioso. A lua cheia brilhava nos pingentes de gelo da serraria, na armadura enferrujada dos soldados mortos.


Eles encontraram o trenó perto da roda de água.


Regis passou por cima dos restos sangrentos da égua. Ele abriu as peles sob as quais estava o sargento.


Havia buracos pretos onde deveriam estar os olhos. Bochechas destroçadas. A boca congelada em um grito contorcido.


Néris dobrou o corpo e vomitou.


Em algum lugar atrás deles, em um matagal coberto de sombras, um gatilho clicou.


Um clarão surgiu na escuridão. O projétil atingiu o braço de Regis, prendendo-o no trenó. O ferimento chiou e fumegou, o cheiro de carne queimada encheu o ar.


— Lá! — gritou Néris. Ela tirou a espada da bainha e correu em direção às árvores.


Dettlaff já sabia com quem estavam lidando. Ele se lembrava do som. Ele se lembrava do brilho das runas na prata.


Transformando-se em um instante, ele bateu as asas de couro e voou em direção à floresta. Ele passou por Néris e desceu sobre o matagal, pronto para encontrar o bruxo.


*


O monstro mordeu a isca.


Sorensen observou quando ele subiu para o céu, abriu as asas e desapareceu no meio das árvores. A mercenária correu em direção à fera, com a espada em riste.


O bruxo ficou grato por essa decisão. Ele não queria ter que matá-la.


Ele bebeu a poção, suspirou pesadamente e saltou de trás de uma pilha de tábuas. Em dois passos largos, ele chegou ao vampiro ainda preso ao trenó. Um golpe rápido para cortar a cabeça do vampiro.


Ele brandiu a espada e a lâmina de prata sibilou.


Uma fração de segundo lento demais.


O vampiro se soltou no último instante, defletindo o golpe com as garras. O bruxo, porém, não deu trégua. Ele fingiu um golpe para baixo, quebrou o ritmo com os passos e avançou, mirando no meio do corpo da fera.


O monstro saiu do caminho e saltou, com as garras brilhantes errando a cabeça de Sorensen por poucos centímetros. O bruxo caiu de joelhos, ficando abaixado. Desta vez, ele atingiu o alvo, cortando a parte inferior da perna da fera. Sem um momento sequer de hesitação, ele mirou o próximo golpe no pescoço. O vampiro se protegeu com a mão. A lâmina cortou os dedos da criatura, perdeu força e passou rente à mandíbula dela.


O monstro saltou sobre o bruxo, passando as garras em volta do pescoço dele. Sorensen resmungou, tirou uma bomba do cinto e soltou-a aos pés deles. Houve um estouro, seguido de um grito estridente. Uma névoa densa envolveu a área, ocultando tudo menos os arredores imediatos. O bruxo brandiu a espada, atingiu o peito da fera e puxou-a para trás com um sinal Aard. O vampiro se jogou dentro do trenó e rolou para a escuridão com o corpo do sargento.


Sorensen respirou fundo, esfregando o pescoço. Um sorriso surgiu lentamente nos lábios dele. O monstro sangrava profusamente — os ferimentos causados pela prata da mantícora incendiariam a qualquer momento, deixando-o ainda mais fraco.


Ele segurou a espada com as duas mãos e acalmou a respiração.


— Hora de acabar com isso — disse ele.


*


Formas humanas brilharam em vermelho nos olhos de Dettlaff. Um besteiro e... mais alguém escondido nas sombras. O sangue deles tinha um cheiro familiar. Os dois tolos com quem ele viajara recentemente. Ele não detectou a presença do bruxo. Perturbador.


A corda vibrou, mas o dardo errou, sendo jogado para longe no ar com um movimento desdenhoso de suas garras. Dettlaff voou mais baixo e mais depressa, prendendo o atirador com uma asa e jogando-o para fora dos galhos. Ele soltou a arma ao cair do galho, batendo com força na neve abaixo.


Dettlaff fez um arco fechado no ar e pousou, voltando à forma humana. O outro homem devia ter imaginado que não fora notado ao sair correndo de seu esconderijo atrás de um tronco, mirando a adaga no pescoço do vampiro. Com velocidade inimaginável, Dettlaff agarrou o pulso do emboscador antes de ser atingido. Seu olhar pairou sobre a lâmina, onde as runas entalhadas brilhavam com um tom de azul sinistro. Ele ficou curioso, mas apenas por um instante. Voltando a atenção novamente para o homem, ele esmagou os ossos que segurava. O atacante gritou quando a arma escorregou de seus dedos moles. Dettlaff o jogou de costas na neve.


Ele olhou friamente para os dois homens encolhidos, impotentes e aterrorizados. Eles o olharam de volta como criminosos condenados esperando a sentença. O coração deles batia como um martelo dentro do peito. Os pulmões se expandiram em respirações nervosas. O ar foi exalado, criando nuvens de vapor no ar gelado. Tanto medo, tremores, lutas, enganação... o que ele deveria fazer? De que adiantava?


— Por quê? — perguntou ele. A respiração dele estava fria. Invisível.


Antes que eles conseguissem forçar a garganta apertada e os dentes que batiam a obedecerem, Néris surgiu da direção da serraria.


— Eles são monstros — exclamou Osyan, segurando o braço quebrado. — Você permaneceu com eles, e são monstros!


Néris não se deu ao trabalho de responder. Percebendo o olhar ávido dele em direção à adaga caída, ela pegou a arma e virou-se para Dettlaff.


— Eles mataram o sargento. Acabe com eles ou deixe que eu faça isso.


O vampiro gesticulou para que ela aguardasse.


— Não consigo entender. Por quê? — repetiu ele. — O comandante trouxe vocês até aqui. Não era suficiente pegar o dinheiro e ir embora? Por que sacar as armas contra nós?


— Não tem dinheiro! — gritou Osyan. — O velho nos atraiu para um campo de batalha assombrado por Comedores Mortos! Ele levou seus segredos para o túmulo, foi isso que ele fez, o imbecil!


— Mas eles — interrompeu Erskine, apontando para Dettlaff — estão carregando tesouros reais, estão sim! Ouro de tumbas antigas. Eles usaram para pagar pelo cavalo que pegamos no caminho. O bruxo... o bruxo nos mostrou.


Houve um brilho de metal. Néris agarrou a moeda jogada em sua direção pelo temeriano, inspecionando-a bem de perto. Devia valer uma fortuna.


— Eles têm mais. Mais do que você jamais conseguiria gastar. Estávamos perseguindo o tesouro do sargento, enquanto que, todo esse tempo...


Dettlaff estava decepcionado. Regis quase o convencera de que aquelas criaturas eram mais do que aquilo. De que os humanos não eram apenas tolos traiçoeiros consumidos pela ganância e enfeitiçados por desejos básicos. De que eles não eram tão vis e degradados como pareciam à primeira vista. Mas o amigo dele estava errado. Eles eram irrecuperáveis. Como o tesouro escondido do sargento, não havia tesouro a ser encontrado entre os humanos. O cofre fora aberto e estava vazio... sempre estaria.


Com uma das mãos, Dettlaff levantou Osyan, que se debateu. Ele inclinou a cabeça, estendeu as presas e deixou que o cheiro do sangue enchesse suas narinas. A euforia pulsou em todo seu corpo.


Logo depois, houve uma dor súbita.


Néris, atacando com a velocidade de uma víbora, enterrara a adaga até o cabo no braço de Dettlaff. O vampiro largou Osyan, saltou por trás, sibilou e arreganhou os dentes. Chamas azuis surgiram no lugar onde a lâmina encantada fora enterrada. Lentamente, as chamas consumiram seu braço, lamberam o pescoço. Ele agarrou a arma, tentando se libertar do feitiço malévolo. Erskine pegou a besta na neve, mirou e atirou. Um dardo de prata atravessou o ar e prendeu o braço livre do vampiro em um tronco de árvore.


Com um braço preso a uma árvore e o outro devorado pelas chamas encantadas, Dettlaff evocou o poder do sangue e tentou se transformar. Mas a prata do bruxo impediu a metamorfose.


Ele soltou um uivo arrepiante e a noite respondeu com um latido distante.


— Quero o dobro da minha parte — disse Néris, ajudando Osyan a se levantar.


Capítulo 12


Ele tentou se erguer, mas a perna destroçada se recusou a obedecer. O sangue escorria de um ferimento em seu peito. A mão com dedos inúteis latejava incessantemente.


Regis olhou para o sargento ao seu lado com inveja. Pelo menos, ele não sentia mais nada.


O bruxo se aproximava. A lua dançou sobre uma lâmina de prata.


Havia apenas um jeito.


Desculpe.


Ele rastejou até o corpo e enterrou as presas nele.


Ele sentiu um gosto metálico na língua. A euforia o invadiu em ondas, pulsando dentro dele. Os ferimentos sumiram e a dor desapareceu, indo para um lugar bem distante.


O bruxo saiu de trás dos restos do trenó e xingou. Regis se levantou. Ele respirou fundo. Seus olhos ficaram vermelhos.


Ele rugiu com um animal primitivo. O rosto dele se alongou em uma máscara sinistra. Garras longas saíram dos dedos da mão saudável.


O restante foi um borrão. Ele observou os eventos se desenrolarem por trás de um véu, como um intruso no próprio coro, vestindo a carne de uma fera primitiva.


E a fera queria sangue.


O bruxo dobrou os dedos em um sinal, mas, desta vez, o monstro se desviou com facilidade, deixando que a onda de energia espalhasse a neve. Em seguida, ele tentou pegar outra bomba, mas foi lento demais. Muito, muito lento. O vampiro o atingiu com um golpe furioso, as garras penetrando seu corpo com facilidade. Os dedos dele afrouxaram e a lâmina de prata caiu no gelo manchado de vermelho.


A fera estendeu as presas.


A artéria latejava, o coração batia, o sangue era bombeado. Era hora de se render à natureza. De fazer exatamente o que ele fora feito para fazer.


Não quero fazer isto.


Regis ficou imóvel. As feições suavizaram, as garras se retraíram com um sibilar. Ele soltou o bruxo, deixando que ele caísse sobre a neve.


Ele escutou a placidez antes da alvorada. Logo, o ritmo do sangue pulsando diminuiu e desapareceu completamente. Ele andou até o caçador e olhou profundamente dentro de seus olhos.


— Não sou nenhum monstro — disse ele.


Ele se virou e afastou-se em direção às árvores, deixando o bruxo sozinho.


*


A chama azul queimou a mão e o antebraço de Dettlaff, lambendo seu ombro e seu pescoço.


— O bruxo disse que acabaria com ele, que queimaria até o osso.


— Não deixe que ele nos engane como o velho! Onde está o ouro, seu imbecil? — perguntou Osyan.


O vampiro mexeu os dedos amortecidos da mão que sobrevivera. O dardo que esmagava seu braço permitia pouco movimento. Ele puxou o manto para trás, soltou a bolsa do cinto e jogou-a no chão.


Osyan, apesar de ferido, foi o primeiro a chegar à bolsa. Em seguida, houve o barulho de um dardo sendo carregado.


— Deixe isso, vagabundo — rosnou Erskine. — Viemos por causa do saque, e você não é soldado: é só um vagabundo.


— Eu ajudei!


— Vá à merda, não ajudou nada. Néris o esfaqueou.


— É por isso que quero uma parte maior — disse ela.


— Até parece. Erskine olhou para Néris de soslaio. — Há um momento, você estava do lado dos vampiros. Osyan, não se mexa, ou vou enfiar um dardo em você.


— Há dois... dois de nós... você... você não pode... recarregar...


— Cuide dele, Erskine, e depois vamos dar o fora. Antes que o bruxo acabe com ele e queira sua parte.


Erskine emitiu um som de desprezo. — Você é uma verdadeira cobra.


— É melhor dividir o total em dois do que em três.


— Você quer um bruxo em seus calcanhares?


— Nós dois podemos lidar com ele.


— Você deve estar brincando. Não vou dormir perto de você.


Osyan tentou tirar vantagem da conversa dos companheiros e rastejou para as árvores. Eles o alcançaram rapidamente. Néris deu uma rasteira nele. Ele rolou pelo chão congelado e caiu em um barranco baixo. Em seguida, a discussão começou novamente.


Logo, olhos se acenderam entre as árvores. Eles tinham vindo em grandes números, atendendo ao chamado de Dettlaff. Em silêncio, eles rodearam a árvore cinzenta, a pouca distância dos desertores despercebidos. A saliva quente escorreu da boca deles para a neve enquanto aguardavam ordens.


Um deles puxou o dardo com os dentes, soltando Dettlaff da árvore. Ele estendeu os dedos rígidos da mão que fora liberada. Com um barulho nauseante, ele arrancou o resto do braço consumido pelo fogo mágico e jogou o pedaço com a adaga no chão, deixando que chiasse sobre a neve.


Ele ergueu a mão e as criaturas da noite estremeceram de ansiedade. O sargento parecia conhecer bem aquelas pessoas... sabia melhor o que elas mereciam. Portanto, Dettlaff decidiu honrar a memória dele.


Ele liberou os Comedores Mortos.


*


Era alvorada e nevava.


Dettlaff estava sentado sozinho ao lado da velha árvore cinzenta. Regis se aproximou, ajoelhando-se ao lado dele. Silenciosamente, eles olharam para os três corpos que sumiam sob um cobertor branco. Moedas de ouro estavam espalhadas entre eles.


— Aqueles dois... mereciam ser punidos — disse Regis. — Mas não um destino deste.


— Todos eles. Todos os três. Eles provocaram isto. A natureza deles os condenou.


— Então você se tornou um especialista em natureza humana.


— Especialista? Não. Mas aprendi a verdade dela.


Dettlaff percebeu a mão ferida de Regis.


— O bruxo?


— Eu o deixei ir.


— Você é louco.


— Não. Só não sou quem você achou que eu fosse.


O sol surgiu por entre as árvores. Um vento gelado soprou a neve dos galhos sem folhas. Regis se levantou e ajustou a mochila.


— Eu vou.


Dettlaff olhou nos olhos vidrados de Néris. Ele estendeu a mão e pegou uma moeda que estava entre os dedos dela.


— Vá — disse ele. — Viva entre os humanos. Entre os seus. Que não encontre o seu fim lá.


— E você? O que vai fazer?


Dettlaff guardou o ouro na bolsa.


— Ainda não sei. Mas sei por onde começar.


*


Flop, flop, flop. Splash.


— Sabrina.


Ele escolheu outra pedrinha. Plana. Lisa. Perfeita. A superfície calma do Yaruga brilhou sob o sol.


Flop, flop, flop, flop. Splash.


— Pronto? A voz dela saiu do xenovox.


— De certa forma. Eu me demito da missão.


Houve um silêncio – do tipo que ocorre antes de uma tempestade terrível.


— O que quer dizer com “demito”? Havia mais veneno nas palavras dela do que no ferrão de um escorpião.


— Você ouviu. Sorensen virou uma pedrinha nos dedos, pesou-a na palma da mão e jogou-a na água. Flop, flop, splash.


— Você está com medo, uh? Acho que o segredo foi exposto. Seu covarde. Imbecil. Um arremedo de homem. Seu merda inútil...


A ladainha continuou. Sabrina tinha a boca de um marinheiro e uma imaginação surpreendentemente rica e depravada. O xenovox vibrou por causa da gritaria do outro lado.


Sorensen escutou por algum tempo, olhando para a água. Depois de algum tempo, ele se cansou do lenga-lenga. Ele pegou a caixa mágica e pesou-a na palma da mão.


Splash.


*


Um pedaço de lenha se partiu dentro da lareira e um calor agradável se espalhou pela sala.


Aine estava sentada sobre as peles e pegou o arco. O som do violino parecia errado. Ela girou o pino, afinando o instrumento. Porém, antes que pudesse tocar, alguém abriu a porta.


Ela o reconheceu imediatamente.


— Onde está seu pai?


— Em Kagen. E seus... camaradas?


— Estou sozinho.


— Entre, meu lorde. Mantenha-se aquecido.


O recém-chegado se sentou à mesa. Ele ponderou enquanto olhava as chamas.


— Foi tudo bem com Ludka?


— Ela chegou ao fim de sua jornada.


Aine largou o instrumento e mexeu a lenha ardente. O estranho colocou a mão no cinto.


— O ouro que você recebeu... valia mais do que pensa.


— Não o temos mais.


— Eu sei.


O recém-chegado abriu a bolsa e colocou duas moedas sobre a mesa. Aine suspirou.


— Não... não está certo. Você nos pagou de forma justa por Ludka. Não é culpa sua se perdemos o nosso ouro por causa da minha estupidez.


O estranho ficou em silêncio por um longo tempo.


— Então digamos que isto também é um pagamento justo.


— Pelo quê?


— Pela lição que está me dando agora.


Ele se levantou e foi embora. Aine olhou para as moedas brilhantes. Depois de um momento, ela pegou o casado de pele de ovelha e correu para a noite.


As pegadas na neve desapareceram depois de alguns passos. O estranho não estava à vista.


Havia apenas o vento gelado que assoviava entre as árvores solitárias. Uma previsão de um longo inverno.


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