A história da segunda Jornada

Capítulo 1


Espere, esqueci os canecos! Deixe-me pegá-los na sela.


Certo, de volta ao fogo. Então, por onde devo começar? Era o que mais tinha, tio Vesemir. É bem difícil lembrar da primeira coisa.... Ah! Já sei! Não tem nada a ver com as nossas aulas teóricas ou treinamentos...


Você se lembra do conto de fadas sobre o gato malhado e a raposa vermelha? Aquele onde os caçadores queriam acabar com a raça deles? Transformar eles em pantufas? Claro que se lembra. Quantas vezes você contou como se fosse uma história de ninar para as crianças de Kaer Morhen? Dezenas? Centenas? Até para Geralt, não é? Não consigo imaginá-lo como uma criança. Ele já foi jovem um dia?


Bom, eu sei. Provavelmente.


Enfim, foi o Geralt que me contou essa história quando eu era jovem. Argh, eu não gostava de quando me chamavam de pessoa "pequena" antigamente e, agora, cá estou eu, fazendo isso comigo. Bom, essa é a verdade: eu era jovem. Sem rumo. Sem companhia. Fugi dos homens do Rei Ervyll e do seu filho nojento, Kistrin, com que eu não queria mesmo casar. Quer dizer, só o bafo dele... Eca! Enfim... Foi assim que acabei na floresta de Brokilon. E teria sido lá que eu teria morrido, se não fosse por Geralt. Se ele não tivesse aparecido do nada e matado aquela centopeia evoluída… Ah, já sei, já sei! Não era uma centopeia, mas um yghern, também conhecido como escolopendromorfo. No entanto, é preciso admitir que até figuras se parece com uma centopeia gigante.


Então Geralt me resgatou do yghern e, mais tarde, quando eu estava no chão da floresta com o estelar brilhando sobre nós e a multidão de árvores, sem conseguir dormir, ele me contou uma história de ninar. Sobre o gato e a raposa caçadas pelos humanos. De certa forma, apesar de não termos nos conhecido na época, foi a primeira lição que você me deu. Durante a fuga, é melhor agir como um gato em vez de tentar algo astuto como a raposa. O importante é ser rápido e reagir sem pestanejar, sem tentar algum plano de sabe-se lá de onde para dominar o caçador. Só faça isso: suba em uma árvore. E não olhe para trás!


Caso contrário, você acabará como um couro de decoração. Como esse tapete vermelho.


Capítulo 2


A quem devemos brindar? Geralt? Saúde!


Nossa, que forte. As águas de Brokilon são bem fortes, hehe.


Como pode ver, tio Vesemir ... Já nessa época, que parece ter acontecido há uma eternidade, percebi que era ele. Quando ele me contou a história do gato e da raposa, algo ficou evidente... Esse poder que nos ligava mais do que qualquer laço sanguíneo. Mas ele acabou sendo muito teimoso para acreditar, na época. Mais sem noção do que uma criança perdida na selva, sabe? Claro que sabe. Fiquei sabendo que você deu uma lição na idiotinha. Pois é, tio.


Mas, de volta à primeira lição: o conto de fadas.


Você também usou ele como uma história de ninar. Acordei no meio da noite, incapaz de dormir com tantos pesadelos. Sem companhia, no escuro... Repentinamente, escuto sua voz, quente e atenciosa. O medo finalmente sumiu, sem deixar nenhum rastro. Você estava contando a história diferente do Geralt⁠ — com mais detalhes, mas nada entediante. É por isso que eu nunca digo nada.


Sinto admitir, mas, no fim, esse ensinamento específico será usado contra o próprio professor. Sim, escutou certo. Contra você. Fui uma criança um pouco — ou até demais — teimosa, mas nós sabemos que você gostava disso. Apesar de, neste caso, eu tê-lo enlouquecido. Um pouco.


Foi quando o monstro de Brokilon acabou se tornando uma memória vaga e distante, como o príncipe feioso Kristin totalmente esquecido, e quando Cintra ... Cintra deixou de ser. A Bastilha dos Bruxos se tornou o meu lar. E vocês, os maiores lobos maus de todos, foram a minha família.

Sim, de fato, você sabe disso muito bem. Acho que estou enrolando, desculpe.


Erm, então... Você se lembra da vez que fugi? Não, não a primeira. Nem a segunda. Eu já tinha me acostumado demais com o lugar. Sim, não era nada demais — uma cama, uma mala e aquele rato enorme e nojento que matei e guardei como troféu — mas eu nunca me senti tão em casa. Longe dos confortos das minhas câmaras em Cintra, sim, mas por decisão minha... Eu teria escolhido Kaer Morhen todas as vezes.


Então, por que fugir, você pergunta?


Contarei em um segundo. Mas, antes, vamos tomar um pouco da boa.


Capítulo 3


Não vou mentir, tio Vesemir. O medo me dominou ao ver Kaer Morhen pela primeira vez. Foi aterrorizante.


Quando Geralt me encontrou após a queda de Cintra — desta vez para finalmente me levar embora — achei que nunca mais sentiria medo. Que o pior já tinha passado... Mas, em vez de lar, fiquei em um castelo sombrio e em ruínas, cheio de ratos e ecos amedrontadores. Vi vultos pretos aterrorizantes. Vi os olhos malignos e incrivelmente brilhantes olhando para mim. Brilhando no escuro. De repente, escutei a sua voz pela primeira vez... Quente e aconchegante e, simples assim, o medo acabou sumindo. Os vultos se tornaram amigos. Protetores. Olhos brilhantes que expressavam curiosidade.


Na verdade, você se importava. De verdade.


Mas algumas coisas... Só você era capaz de resolver. Por exemplo, a jaqueta de couro que você fez para mim. Ela estava um pouco torta... Tá, tudo bem. Bastante, na verdade. Enfim, parecia o pesadelo de qualquer alfaiate. Mas eu ainda gostei, assim como gostei da espada que você forjou para mim. Ninguém na fortaleza — ninguém mesmo! — se esqueceu do meu treinamento. Nenhuma vez. Mas você só se lembrou que uma criança, mesmo com um dos meus talentos, precisa de roupas e uma espada que combinem. Você tentou o seu melhor e eu agradeço.


Será que foi demais?


Se eu não quisesse retribuir tanto assim, talvez tivesse ficado na Trilha. Não teria corrido para a floresta em vez de seguir meu treinamento. Eu só achei que seria capaz de voltar para o forte antes que alguém percebesse meu desaparecimento. Sabe, eu já ouvi algumas vezes você dizendo que não se importaria de comer carne de cervo. Às vezes, você até sussurra: se alguns de vocês jovens bruxos resolvessem caçar, poderíamos fazer um banquete. Mas nããão... É sempre feijão hoje, feijão amanhã...


Bem, eu era jovem. E estava entre os bruxos. Então achei que seria uma ótima ideia atender ao seu pedido. Só tinha uma pequena preocupação... A de que você não reconhecesse a minha linha de pensamento, ou pior ainda — que você me fizesse polir espadas por um dia depois que descobrisse. Porque se importava, obviamente. Comigo e com as espadas.


E é por isso que decidi que seria melhor surpreendê-lo. Com um delicioso javali.


E eu sabia exatamente onde encontrar um...


Capítulo 4


Não, não mesmo.


Eu não fui atrás do javali totalmente despreparado. Montei armadilhas... Tudo bem. Admito. Não foi nada elaborado como uma cova de lobo ou algo assim. Só uma armadilha simples.


Mas funcionou!


Pois bem. Quase funcionou. Ela pulou... Estalou! Quebrou! No entanto, o javali ainda conseguia se mover. E então… a fera enorme investiu.


Diretamente a meu caminho.


Mesmo assim, não saí da frente, tio Vesemir. Levantei minha espada, que você garantiu que se encaixasse perfeitamente na minha mão. E, em seguida, repeti tudo que você me ensinou durante o treinamento. Bote, atacar, recuar! Meia pirueta, golpe, rebote! Balancei um braço, cortando com o outro, saltando pelo terreno escorregadio da floresta com as raízes escondidas por debaixo das folhas.


O javali pouco ligava para as piruetas. Alguém poderia até dizer que ele reagiu com resistência admirável. Apunhalei suas costas peludas uma vez, mas ele nem pestanejou. Abruptamente, ele levantou a cabeça, chutou a lama e disparou novamente em minha direção.


Mantive a posição, comprando a briga. Você teria sentido tanto orgulho...!


Atacar, saltitar! Riposta! Meia pirueta! Riposta, pirueta completa! Meia pirueta! Saltar e cortar!


Mas o maldito suíno, novamente, nem pestanejou. Olhou para mim diretamente. Firme. O que eu deveria fazer? Meus golpes não pareciam surtir efeitos... Nenhum, aliás. Como se eu estivesse apunhalando um saco vazio ou um toco de madeira.


Mas não! É preciso manter a calma — respirar — e seguir em frente. Você me ensinou isso. A manter a concentração, aguardar até o último momento e fugir. Preparar… Apontar… Pirueta!


Infelizmente, aquela pirueta específica não funcionou muito bem. E, com isso, quero dizer: não funcionou nada. Ele me acertou pelos nados — argh! — e eu voei uns bons 6 metros pelo ar. Bati de costas contra uma das árvores e a espada voou da minha mão. Por um momento, vi Brokilon diante dos meus olhos, junto com estrelas. A água corria pela minha cabeça.


E um pensamento: fuja! Fuja como o gato da sua história. Pule na árvore e não olhe para trás.


O javali não estava com pressa. No início, ele cheirou a espada largada na lama. Em seguida, começou a movimentar sua cabeça enorme em minha direção: uma pequena garota em um emaranhado de galhos. Minhas costelas doíam cruelmente, cada respiração se espalhando pelo meu corpo com uma dor pulsante.


Ele permaneceu em modo sentinela, o javali astuto. Encarando. Pacientemente debaixo da árvore.


Não sei quanto tempo passou até ele se entediar. Mas foi o suficiente para você notar minha ausência.


Capítulo 5


Enquanto eu esperava o nosso jantar, lembrei das palavras de uma rima da creche. Você recitou em minha mente:


“Como o javalizinho

Melhora o chifrezinho,

E o arrasta pelo chão,

Batendo nas árvores com toda pressão!

Olha só como ele sorri

E as garras do javali,

E dando boas-vindas,

Com suas enormes mordidas!”


O poema Louis de Charolleis é mais uma das várias coisas que conheço graças a você, tio. Infelizmente, acabou não tendo muita utilidade nessa situação.


Bem chato, sério.


Agarrada no enorme carvalho, não conseguia tirar sua voz e as rimas da cabeça. Foi muito difícil organizar meus pensamentos — bolar algum plano. A minha espada enlameada, debaixo dos cascos do javali, não ajudava na concentração. Era muito frustrante. O que você diria, vendo a lâmina em tal estado...? Eu fiquei agonizada só de pensar! Enfim, quando tive certeza de que a fera havia finalmente ido embora, só conseguia pensar em recuperar a minha arma.


Desci lentamente da árvore e dei alguns passos cuidadosos. Minhas costelas doíam cada vez que inspirava e meu coração latejava como um sino.


Abruptamente, escutei sua voz.


Não, não na cabeça, mas de verdade. Aproximando-se. Você gritava o meu nome, mas, em vez de felicidade, senti pânico. Rapidamente, enfiei a mão no chão e peguei a espada. Sua lâmina brilhava por baixo da sujeira. Foi quando ouvi mais gritos — meu nome ecoando no ambiente. Sombras se moviam entre as árvores. No meio da escuridão, ficou cada vez mais alto: Ciri! Cirilla!


Cirilla Fiona Elen Riannon. Princesa de Cintra...


Repentinamente, os pesadelos voltaram, mesmo eu estando acordada. Uma parede de fogo à minha frente. Eu vi um assustador cavaleiro das trevas com um capacete alado. Ouvi os gritos dos cintrianos sendo executados.


Não existia esperança.


Repentinamente, em um impulso, apareci no topo de algum pinheiro aleatório. E, em seguida, caí. Mas, logo antes de atingir o chão, aconteceu de novo. Outro pinheiro. Dessa vez, segurei em um galho antes de cair como uma pedra. Milagrosamente, de alguma forma, consegui segurar minha espada. Em seguida, assisti enquanto você rastreava meus passos até o grande carvalho. Como você pareceu confuso quando meus rastros apenas... sumiram.


Na época, eu não sabia o que tinha acontecido, mas acho que foi provavelmente a primeira vez em que teletransportei.


Capítulo 6


Como você não ouviu falar disso? Bem, Geralt me ajudou. Apesar de todos estarem procurando, foi ele quem finalmente me achou. Como sempre. Destino, né?


Eu sei, eu sei, já tá ficando ultrapassado. Sempre esse papo de destino, sem parar.


Te falar, viu!


Enfim, eu estava tão confusa enquanto observava de cima da árvore como nunca. O mundo não parecia real. O tempo passava em um ritmo muito alterado e esquisito. Não acho que profetizei o momento, ou você certamente teria me ouvido.


Mas tive uma visão...


Uma gata fugindo de um bando de raposas. Ela saltou, de lá pra cá, de árvore em árvore. As raposas perseguiram furiosamente. E os caçadores surgiram por trás. Pretos, vermelhos, cães e até um leão assustador.


Obviamente, as raposas sofreram uma chacina enquanto a gata continuava a fugir. Era como se ela nunca fosse parar...


Foi quando abri meus olhos.


Geralt estava me observando com uma cara estranha, mas bastou apenas um sorriso leve. Ele estava com raiva de mim, claro, mas eu estava segura e era isso que realmente importava para ele.

Obviamente, comecei a falar assim que possível. Sobre deixar a Trilha, sobre o meu grande plano, sobre a armadilha que não funcionou e sobre o javali que se recusou a desistir. Eu só não mencionei os saltos esquisitos ou a visão. Fiquei com medo... Queria fingir que não tinha acontecido. Pensei: em vez de matutar sobre essas coisas, por que não convencê-lo sobre o meu plano original? Afinal, trabalhando em equipe, bem... o javali não teria chance!


Geralt discordou. Disse que eu tinha provavelmente encontrado Selva Antiga... O espírito da floresta. Então... nada de javali. Mas não saímos de mãos vazias.


Durante o retorno a Kaer Morhen, conseguimos caçar uma lebre. Era pequena, magra e malhada, mas a sopa acabou ficando deveras saborosa. Lembra? Não, claro que não... Você nem notou a lebre quando voltamos. Não se importou com a fadiga ou com a fome. Você só estava interessado em mim... No medo que ecoava em minha voz e no ferimento nas costelas. Você cuidou dos ferimentos imediatamente e começou a preparar algumas poções de cura.


Você nunca chegou a encostar na sopa de lebre. Nem experimentou. Em vez disso, fez com que eu comesse tudo para recuperar minhas forças.


Capítulo 7


Contos de fadas e cantigas infantis. Todos esses volumes grandes lidos juntos. Lições de esgrima... Mais alguma coisa? Hmm, talvez, para variar, algo que você não me ensinou?


Muitas coisas. Certo. Mas isto é algo um tanto crucial.


Ao contrário das aparências, nem você nem Geralt me mostraram como matar. Como me defender, sim. Como sobreviver, claro. A não desistir. Mas não como tirar a vida de alguém a sangue frio.


Porque lutar não é mesmo que matar. Você sabe muito bem disso.


Você me ensinou a usar uma espada e a dar piruetas. Como desviar e bloquear. Ora, até mesmo como atacar! Como cortar uma bolsa de couro. Um manequim de palha. Um roedor grande. Mas não como matar outro ser humano...


Isso eu tive que aprender por conta própria. Muito mais tarde.


Na primeira vez, eu já tinha havia muito deixado Kaer Morhen⁠. Eu obtivera alguma educação básica no Templo de Melitele, onde recebi treinamento de magia sob a supervisão de Yennefer. Mas, de novo, quando comecei a me acostumar com os novos arredores, fui levada para outro lugar. Desta vez, fui parar na ilha de Thanedd.


Durante o golpe.


Não vou recontar o incidente inteiro a você, tio. Você já conhece bem os eventos.


Mas foi terrível. Em um momento, eu estava dormindo na cama e, no momento seguinte, estava ajoelhada entre cadáveres. Subitamente, Thanedd se tornou uma segunda Cintra. As pessoas gritavam, lutavam desesperadamente e morriam brutalmente diante dos meus olhos. Seja pela espada ou com feitiçaria, a morte é feia. Por isso, fugi dela. Especialmente porque aqueles a quem eu amava desapareceram. Deixaram-me para ser caçada — de novo. E, no caos, nessa corrida louca pela minha vida, fui parar em Tor Lara. No portal. Ele me atraiu, evocou-me, até mesmo sussurrou... E não havia outra escapatória, apenas aquela forma oval brilhante. Portanto, fechei os olhos e entrei nele. Houve um brilho intenso e um redemoinho furioso, uma explosão que esmagou minhas costelas e sugou o ar dos meus pulmões.


Acabei completamente sozinha. No meio do nada. O portal me cuspiu em um deserto aleatório, onde tive certeza de que morreria. Mas não morri. Encontrei a saída — você sabe, eu sempre consigo, de alguma forma. Infelizmente, corri diretamente para as mãos de bandidos mercenários ...


Parecia que, não importava o quanto corresse, os problemas sempre me encontravam. Ser capturada parecia ser o meu destino mais uma vez. E, como nós dois sabemos agora, é bem difícil fugir do destino. Mas não era para ser. Graças à ajuda de um bando de raposas, consegui escapar.


Sempre me perguntei quando as raposas das minhas visões apareceriam, quem seriam, como seriam... No fim das contas, elas acabaram sendo um grupo um tanto violento.


Sim, tio. Quero lhe contar sobre um passado do qual não tenho o menor orgulho. Sobre atos pelos quais nunca me perdoei. Sobre a época em que transformei em uma bandida comum.


Um Rato.


Capítulo 8


Contos de fadas e cantigas infantis. Todos esses volumes grandes lidos juntos. Lições de esgrima... Mais alguma coisa? Hmm, talvez, para variar, algo que você não me ensinou?


Muitas coisas. Certo. Mas isto é algo um tanto crucial.


Ao contrário das aparências, nem você nem Geralt me mostraram como matar. Como me defender, sim. Como sobreviver, claro. A não desistir. Mas não como tirar a vida de alguém a sangue frio.


Porque lutar não é mesmo que matar. Você sabe muito bem disso.


Você me ensinou a usar uma espada e a dar piruetas. Como desviar e bloquear. Ora, até mesmo como atacar! Como cortar uma bolsa de couro. Um manequim de palha. Um roedor grande. Mas não como matar outro ser humano...


Isso eu tive que aprender por conta própria. Muito mais tarde.


Na primeira vez, eu já tinha havia muito deixado Kaer Morhen⁠. Eu obtivera alguma educação básica no Templo de Melitele, onde recebi treinamento de magia sob a supervisão de Yennefer. Mas, de novo, quando comecei a me acostumar com os novos arredores, fui levada para outro lugar. Desta vez, fui parar na ilha de Thanedd.


Durante o golpe.


Não vou recontar o incidente inteiro a você, tio. Você já conhece bem os eventos.


Mas foi terrível. Em um momento, eu estava dormindo na cama e, no momento seguinte, estava ajoelhada entre cadáveres. Subitamente, Thanedd se tornou uma segunda Cintra. As pessoas gritavam, lutavam desesperadamente e morriam brutalmente diante dos meus olhos. Seja pela espada ou com feitiçaria, a morte é feia. Por isso, fugi dela. Especialmente porque aqueles a quem eu amava desapareceram. Deixaram-me para ser caçada — de novo. E, no caos, nessa corrida louca pela minha vida, fui parar em Tor Lara. No portal. Ele me atraiu, evocou-me, até mesmo sussurrou... E não havia outra escapatória, apenas aquela forma oval brilhante. Portanto, fechei os olhos e entrei nele. Houve um brilho intenso e um redemoinho furioso, uma explosão que esmagou minhas costelas e sugou o ar dos meus pulmões.


Acabei completamente sozinha. No meio do nada. O portal me cuspiu em um deserto aleatório, onde tive certeza de que morreria. Mas não morri. Encontrei a saída — você sabe, eu sempre consigo, de alguma forma. Infelizmente, corri diretamente para as mãos de bandidos mercenários ...


Parecia que, não importava o quanto corresse, os problemas sempre me encontravam. Ser capturada parecia ser o meu destino mais uma vez. E, como nós dois sabemos agora, é bem difícil fugir do destino. Mas não era para ser. Graças à ajuda de um bando de raposas, consegui escapar.


Sempre me perguntei quando as raposas das minhas visões apareceriam, quem seriam, como seriam... No fim das contas, elas acabaram sendo um grupo um tanto violento.


Sim, tio. Quero lhe contar sobre um passado do qual não tenho o menor orgulho. Sobre atos pelos quais nunca me perdoei. Sobre a época em que transformei em uma bandida comum.


Um Rato.


Capítulo 9


Como pode ver, tio, as pessoas estavam pulando na minha espada. Talvez porque eu era o Rato mais jovem. Ou apenas porque eu parecia ser a pessoa menos ameaçadora. Independentemente do motivo, a morte era uma presença constante. Seguindo todos os meus passos. À minha frente. Ao meu redor. Sempre ao meu alcance.


Sempre pensei em Kaer Morhen, especialmente à noite. O lar para o qual sempre quis voltar com todo meu coração. Mas eu estava com medo. Perdi tanto em Thanedd, tio. Ou, pelo menos, era o que eu achava. Eu me sentia sem poder nenhum.


Eu não queria desistir do pouco que me sobrou. Acabar sozinha.


Mas eu esperava… Suspeitava que você ainda estaria lá. Sonhava com o retorno ao forte... Imaginava o seu sorriso aconchegante ao me ver chegando. Bolei mapas e trilhas em minha mente, desejando ir atrás. Mas você sabe como é. Em tempos de guerra, a solidão na estrada significava uma morte rápida e bruta.


E eu não queria morrer e acabei me juntando a uma gangue colorida. Permaneci escondida entre as unidades, como um verdadeiro rato. Apenas... Segui as emoções para me safar.


Até a noite que atacamos a aldeia de Nova Forja.


Invadimos com um único propósito: incendiar a casa do prefeito. Até virar cinzas. Aparentemente, ele foi o tolo que entregou nosso companheiro aos mercenários... Aqueles da taberna. E nós precisávamos que as pessoas soubessem que a punição por tal ofensa era inevitável. A sentença…? Morte, obviamente.


Mas você precisa entender, tio, que nem tudo era vilania. A reputação dos Ratos era boa e ruim. Pois nós — as crianças menosprezadas — compartilhávamos os espólios. Distribuíamos água, alimento e roupas dos nilfgaardianos para as aldeias. Ajudávamos as pessoas. Pagávamos boas quantias de ouro e prata para artesões e alfaiates para criar o que mais estimávamos: armas, roupas e ornamentos. E, em troca da nossa generosidade, eles nos alimentavam. Nos hospedavam. Nos escondiam. E, mesmo quando espancados até a morte, não revelavam nossa localização. Eles eram leais.


Eventualmente, os prefeitos ofereceram uma grande recompensa pelas nossas cabeças.


Aqueles mais gananciosos que o resto começaram a procurar o ouro nilfgaardiano. Assim, o prefeito de Nova Forja, ofuscado pela ganância pelas moedas, acabou fadando e condenando a própria aldeia à ruína no processo.


Mas, o que aconteceu naquela noite… entre as chamas e o caos… me trouxe de volta à realidade. Fez com que eu percebesse o que realmente importava. Convenceu-me a deixar os Ratos assim que possível.


Se eu pudesse.


Capítulo 10


Quando entregamos o ouro, fomos barulhentos e extravagantes. Fizemos um grande alarde. Mas, quando atacamos, fazíamos como os ratos... ou raposas. Silenciosos, traiçoeiros, astutos.


Naquela noite, o primeiro som a romper o silêncio foi o estalar das chamas. Em seguida, o barulho reinou. Gritos de pessoas fugindo do fogo. Gritos e lamentos. Nossas montarias, acostumadas com barulho, mal reagiram ao alvoroço. Os primeiros sobreviventes fugiram cabana fumegante. Servos, a julgar pelos vestes. Desembainhamos nossas espadas. Quem não morrera para o fogo, estávamos preparados para finalizar com nossas próprias mãos.


Abruptamente, um tumulto aconteceu nos fundos da casa. Os cavaleiros surgiram de um estábulo escondido. Dentre eles, o prefeito, usando nada além das calças. Sua barriga gorda e nua balançava enquanto ele cavalgava. Como os servos não eram do nosso interesse, perseguimos o alvo principal, junto com seus entes. Haviam muitos deles — o prefeito, aparentemente, morava com toda sua família, até com o primo distante, sem dúvidas. Cada Rato tinha mais do que alvos o suficiente.


Eu tinha dois.


Um em um grande capão, o outro em uma potranca. O maior cavaleiro sentava firme na sela e, o menor, mal conseguia se manter na montaria. Eu galopei atrás deles, engolindo um ar seco. Eles estavam ao meu alcance quando um vento forte bateu. Eles olharam pra mim, com o cabelo balançando ao brilho do fogo. Fumaça saía das chamas, deixando-me engasgado. Tossi com muita força até lacrimejar. Limpei os olhos para enxergar melhor. Não sabia se era apenas imaginação —ou apenas uma ilusão de óptica —, mas... o maior deles, o tio... parecia com você. E, o menor, tinha mais ou menos a minha idade. Uma criança, na verdade.


Bloqueei o caminho deles, balançando minha espada.


O mais velho comprou a briga. E, mesmo se parecendo com você, ele certamente não tinha seu jogo de perna. Eu o derrubei rapidamente, com pouco esforço. Derrubei ele da sela, empurrando-o para o chão e perguntei instintivamente: quem é você? Como se importava. O homem começou a berrar palavras de forma caótica, contorcendo-se como uma coruja presa em uma rede. A criança desceu de seu cavalo às pressas e segurou seu acompanhante, mesmo apesar de o velho ter falado para ele correr. No entanto, o jovem não quis deixar seu guardião.


Foi quando ele me bateu.


Mentor e estudante. Como você e eu.


O garoto só podia ser o filho do prefeito — tinha até a mesma cara de bolacha. Mas o olhar… a expressão… me lembrava de… mim. Ingenuidade, medo, dor. Estava tudo distinto em seu rosto. Ele espelhava o meu rosto de pouco tempo atrás. Pois, naquela noite, eu estava com outra cara. A cara de caçador. Assim como aqueles que me perseguiram há muito tempo.


Agora, era eu quem perseguia. Eu quem machucava, roubava, matava...


A espada caiu dos meus dedos dormentes. Meus lábios mal se moviam enquanto eu falava as palavras: Vá embora... Fuja. Sai daqui, porra!


O mais velho não fez perguntas, não tentou compreender minha mudança súbita de humor. Ele rapidamente segurou a mão da criança e colocou-o na sela. Imediatamente em seguida, ele saltou em sua montaria e saiu aos trotes com os cavalos.


Sem emoção, observei-os galopando para longe.


Atrás de mim, os berros torturados da família do garoto.


Capítulo 11


Portanto, decidi ir embora.


Na noite seguinte, recolhi os poucos pertences que tinha e saí silenciosamente do acampamento. Talvez eu tenha uma morte silenciosa na estrada, mas tinha que correr o risco. Eu queria voltar para Kaer Morhen. Para encontrar você, talvez Geralt ou Yennefer...


O líder da gangue estava no meu caminho: Giselher.


Ele disse que sabia o que eu fizera. Que eu deixara a criança fugir. E ele nem me culpou por isso, mas o mentor da criança... ele deveria ter morrido. Nenhum adulto devia ser poupado. Caso contrário, espalhariam-se rumores de que era possível mexer com os Ratos que, depois, só lhe dariam um tapa no traseiro e deixariam que fosse embora. Não, a punição deve ser mais severa. Todos os traidores devem pagar com sangue. Era o código – e o motivo pelo qual Giselher estava à minha frente com a espada em riste.


Mas eu não era uma traidora. Pelo menos, ainda não.


A ameaça brilhou nos olhos dele: voltar para o acampamento ou nos trair. Viver ou morrer, o que será? Porque, se eu não recuasse, um Rato morreria naquela noite. Era assim que as coisas eram. E, se houvesse a menor chance de que fosse eu, talvez tivesse que levantar minha espada. Aceitar a luta. Mas ele perderia, com certeza, tio... eu tinha muito mais habilidade. E não poderia usar magia porque, na época, achei que a tinha perdido para sempre. Não poderia simplesmente saltar atrás dele e desaparecer na noite sem deixar rastros.


Não, eu tinha que fazer uma escolha: matar um Rato... ou continuar um Rato.


Veja bem, tio... Giselher sempre me tratara bem. Eu nunca tentou me machucar nem tirar vantagem de mim. Dividia os espólios. Ele nos apoiava. Cuidava de nosso bando maltrapilho de renegados. No que lhe dizia respeito, o mundo poderia queimar até virar cinzas, mas não nós... não os Ratos dele.


Não ergui a minha espada. Fingi uma risada, uma bandeira branca artificial. Disse a ele que parasse de ser dramático. Uma garota não podia dar um passeio à meia-noite? Isso não era permitido?


Giselher deu um sorriso torto. Em seguida, convidou-se para me acompanhar no passeio improvisado.


Depois disso, ele não falou mais na criança e no mentor apesar de eu garantido a ele que mataria o velho na primeira chance que tivesse. Felizmente, essa chance não aconteceu, apesar de eu ter passado muitas mais luas na companhia dos Ratos.


Semanas se passaram. Meses. Mais bandidagem e sangue derramado. Até que chegou o dia em que finalmente os deixei...


Foi no dia em que todos os Ratos morreram, tio... o bando todo. Mesmo quando eu escolhia não matar, a morte me seguia a cada passo do caminho.


Eles foram massacrados pelo leão da minha visão: Leo Bonhart. Um caçador de recompensas. Um assassino contratado que sentia prazer em causar dor, que tinha os olhos em mim acima de todos os outros. Era o homem mais assustador que eu conhecera na vida. Ele transformou meu bando, minhas raposinhas, em... em troféus.


E eu...


Preciso de um descanso, tio. Que tal mais uma bebida, hein?


A última, prometo.


Capítulo 12


Eu o matei, tio... digo, Bonhart.


Finalmente, depois de tanto tempo. Depois de aguentar dor, perda, humilhação. Depois de correr tanto. Até mesmo para outros mundos. Outros tempos. E parecia que eu nunca pararia. A morte atrás de mim, à minha frente, sempre à mão. Mas não é possível fugir do destino, não por muito tempo.


Lutar contra aquele desgraçado... foi algo incrível, tio. Se você visse como lidei com ele, ficaria muito orgulhoso de mim.


Mas essa é uma história para outra hora.


O fogo está morrendo. Meu copo está vazio, o seu... um tanto cheio. E eu gostaria de lhe contar sobre a lição final que você me deu.


Algum dia, você terá que parar de fugir. Mesmo que seus entes queridos lhe digam o contrário.


Minha avó, Geralt, Yen... você. Todos me disseram para fugir. E eu fugi. Fugi de Cintra e de Brokilon, de Thanedd e de Tir ná Lia. Fugi de caçadores e assassinos, de elfos e humanos, de pretos e vermelhos. Eu não queria colocar em perigo aqueles que amava e fugi para outros mundos. Achei que vocês estariam finalmente seguros se eu os deixasse sozinhos. Mas vocês ainda me procuraram. Incansavelmente. Pois é assim que o amor funciona. Porque, quando você ama uma pessoa, diz a ela para fugir. Você enfrenta o perigo sozinho, feliz, sabendo que a pessoa está segura.


Mas a luta também era minha, tio. Não era só sua.


Nos meus momentos mais sombrios, foi a lembrança de seu cuidado que me ajudou a manter minha humanidade. Mas há tanta escuridão neste mundo. Você nunca conseguiria me manter longe dela... nunca funciona assim. O mal sempre alcança você. A morte, em algum momento, envolverá você. Até que você a enfrente. Junto com as pessoas que ama... e por elas.


Demorei muito tempo para compreender. E muito sangue teve que ser derramado antes disso. O seu sangue também, tio. Tive que perder você para entender.


Pois foi quando finalmente decidi parar de fugir. Um ano atrás.


Quando você morreu.


Quando eu ainda era criança, bruxinha em um castelo arruinado cheio de ratos e ecos assustadores, você disse que não viveria para sempre. Que logo você descansaria em uma cova rasa. Mas ninguém acreditou em você. Nem por um momento.


Você era eterno para nós. Indestrutível.


Ensinou tanto a todos nós.


É por isso que estou aqui, no aniversário de sua morte, pagando um tributo a você com essas brasas quase mortas, nas sombras das ruínas de sua adorada Bastilha.


Porque, apesar de seu corpo não estar aqui, seu espírito sempre estará, vivo na sabedoria que você compartilhou e no amor que deu.


Eterno, no fim das contas...


Adeus, Vesemir, último mestre de Kaer Morhen.


Meu mentor.


Adeus, velho amigo...


Nunca vou deixar de sentir saudades de você.

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